As mulheres também sofrem da síndrome do vira-lata

As mulheres também sofrem da síndrome do vira-lata (por Cristina Bittencourt)

No mês da mulher, trago uma convidada especial para este artigo: minha sócia Cristina Bittencourt. Empreendedora, profissional e ser humano exemplar, ela é a pessoa certa para falar de um assunto que mexe muito comigo e que precisa ser resolvido no Brasil: a síndrome do vira-lata.

Já passei por diversas situações e vi muitos empresários brasileiros tendo que provar que nossas empresas, tupiniquins, são tão ou mais competentes que as estrangeiras. E isso não ocorre só com empresas. Brasileiros de todas as profissões muitas vezes só são reconhecidos aqui dentro quando são reconhecidos primeiro lá fora.

Noto que essa mesma síndrome ocorre com as mulheres e foi sobre essa reflexão que convidei a Cris para expor seu ponto de vista. Minha provocação partiu da seguinte pergunta: como a mulher brasileira lida com a síndrome do vira-lata?

Agradeço muito o convite e as palavras do Everton. Foi ótimo fazer essa reflexão, já que nunca tinha pensado na relação entre a síndrome do vira-lata e as mulheres.

Criado por Nelson Rodrigues após a derrota da nossa seleção na Copa de 1950, o termo “complexo de vira-lata” passou a representar a baixa autoestima dos brasileiros, que duvidam da sua própria capacidade e consideram melhor tudo o que vem de fora.

O Brasil é um país em crise de identidade, não conhece e não valoriza sua própria história, seu povo, sua cultura e isso afeta nossa sociedade como um todo. Mas já parou para pensar como é a vida de uma mulher em um país sem identidade, patriarcal e cheio de desigualdades? Essa mesma sociedade que acredita que nada do que é feito aqui é bom o suficiente também é pautada em valores distorcidos de status e aparência que levam uma pressão ainda maior às mulheres, colocadas à prova a todo o momento sobre sua capacidade, competência e inteligência.

As adversidades sociais e econômicas são parte da trajetória do país e origem dessa síndrome. Hoje 15 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, 11 milhões são analfabetas, 51% da população adulta têm ensino fundamental e 15% ensino superior. Esse é o cenário que reforça a todo o momento que o que vem de fora é melhor. E os obstáculos para as mulheres são ainda maiores se considerarmos que nossa participação no mercado de trabalho só começou a ganhar espaço a partir de 1970. Na época éramos menos de 20%, agora pouco mais de 50%; já os homens, cerca de 70%.

Para as mulheres, a cura da síndrome do vira-lata precisa começar aqui dentro. Buscamos mais espaço e reconhecimento no mercado de trabalho, principalmente em áreas de maioria masculina e cargos de liderança; e muitas mulheres ainda precisam vencer crenças limitantes e construções de modelos que foram ensinados a elas sobre o que podem e não podem fazer sendo mulheres. Apesar da tímida presença delas em algumas áreas, já há várias iniciativas e redes de apoio a mulheres, estimulando-as a desenvolver todo o seu potencial e também a incentivar umas às outras.

Homens, mulheres, sociedade. Nosso maior erro é achar que precisamos provar algo a alguém. Temos exemplos incríveis de projetos, empresas e profissionais que são referência em sua área de atuação e pessoas que usaram de criatividade para criar soluções fantásticas! Homens e mulheres que se destacaram aqui somente depois de serem reconhecidos lá fora.

Como país colonizado, fomos ensinados assim, que o que é de fora é melhor. Difícil quebrar essa crença sem um forte trabalho de base. Não temos que esperar governos e empresas para mudar esse modelo mental. Podemos começar mudando nossa atitude em nossas casas, negócios, comunidade, com nossos filhos. Precisamos de novas referências, reconhecer nossa criatividade e capacidade, resgatar nossa história, estimular que homens e mulheres se desenvolvam no que quiserem e valorizar o que é nosso. Os exemplos estão aí, só precisamos reconhecê-los. Autoestima e autoconfiança começam com necessidades básicas atendidas e educação, e talvez nós possamos dar o primeiro passo para criar uma sociedade onde homens e mulheres possam construir seu próprio caminho sem ter que provar nada a ninguém.

 

Fonte:
Artigo de Cristina Bittencourt para a coluna “Ponto de Partida”, de Everton Gubert, na Revista Feed&Food. Publicado na edição de março de 2019.

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